Já alguma vez vos aconteceu olhar para uma pessoa e perceber logo que se passa algo de fundamentalmente errado com ela?
Saber instintivamente que alguma coisa não está bem e que é alguma coisa importante, grande demais para ignorar?
Rua da Sé, marchas das crianças, uma senhora vestida de vermelho de repente olha na minha direção e faz uma cara que eu não consigo descrever. A primeira coisa que me veio à cabeça é que a mulher levou uma facada e só agora se apercebeu que vai morrer. Qualquer coisa assim mesmo grave.
A senhora freneticamente olha para cima e para baixo, ainda com aqueles olhos sobre-atentos, que olham mas não veem, que miram tudo sem focar em nada.
E isto tudo numa meio de alegria, pessoas a bater palmas, crianças a desfilar, música, gritos, felicidade e no meio daquilo tudo aquela pobre mulher, com ar de quem acabou de ouvir que lhe morreu o marido e nunca mais o volta a ver, foi completamente desinquietante.
De repente a mulher desaparece-me da visão e tive que combater o impulso de correr ao sítio onde ela estava para me certificar que estava tudo bem...
Ainda não consigo perceber como é que uma pessoa que eu nunca tinha visto e quase de certeza nunca mais volto a ver mexeu tanto comigo sem sequer saber que o estava a fazer.
Pelo que percebi não muito tempo depois, a senhora tinha perdido o filho.
O pessoal do staff da festa lá o achou, e foram-se embora mãe e filho completamente lavados em lágrimas, mas juntos e seguros.
É completamente desconcertante.
Por um lado sinto-me cheio de alegria, que a catástrofe evitou-se, que mãe e filho estão novamente juntos, que não aconteceu o pior, que está tudo bem.
Por outro fico confuso, o tumulto de "ai coitada" e "já passou", o distanciamento, que não sei quem é a mulher, que não devia estar a sentir-me assim, porque nada tem a ver comigo, que nada muda a minha vida se o rapaz desaparece de vez ou não, se fugiu ou foi raptado, ou seja lá o que for, não é dos meus, não tenho que me preocupar, não os conheço, nem me aquece nem me arrefece.
Depois sinto-me extremamente culpado por pensar assim, porque é uma situação indescritível, que não se deseja a ninguém, que eu não quereria passar nem por nada, que devia-me preocupar, porque as pessoas boas preocupam-se com estas coisas, as pessoas boas preocupam-se com o que acontece com os outros, e será que isto quer dizer que eu não sou uma boa pessoa? Não quereria eu que alguém sentisse a minha falta, ficasse angustiado com a minha ausência se eu desaparecesse?
Acho que o pior, o que mexeu mais comigo, que me pôs mais fora de mim, foi o facto de que esta situação trouxe-me à memória que nada é seguro. Nada é constante, nada se consegue proteger completamente e de um momento para o outro pode-se perder tudo... e não há nada a fazer.
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